
Na literatura, Fausto vende sua alma em troca da vida
eterna, mas aprende da maneira mais difícil que a eternidade pode ser um
pesadelo, ele vive para lamentar a barganha. O músico norte-americano Robert
Johnson supostamente vendeu sua alma para se tornar o maior de todos os
guitarristas de blues, mas foi amaldiçoado para sempre.
Para um monge da Bohêmia que redigiu as linhas do lendário
Codex Gigas (pronuncia-se GUI-gas), obra também conhecida como "Bíblia do
Diabo", a barganha envolveu trocar sua alma pela oportunidade de escrever
o maior livro do Mundo Medieval.
A aura de mistério que envolve esta incrível artefato apenas
se aprofundou nos últimos séculos, quando o imponente tomo, cujo nome se traduz
literalmente como "Livro Gigante", continuou atraindo o interesse e
despertando a curiosidade de todos que lançaram os olhos sobre ele. E não é de
se admirar que o livro chame tanta atenção.
O Codex Gigas é o maior documento medieval conhecido. As
páginas de velino grosso e amarelado foram supostamente confeccionadas com a
pele esfolada de 160 burros que deram origem a um livro com notáveis 92 cm de altura, 50 cm de largura e 22 cm de espessura. As 310
páginas que o compõem são encerradas em uma volumosa encadernação com capa de
madeira, couro reforçado e detalhes metálicos. O volume é tão pesado que são
necessários dois bibliotecários para manuseá-lo.
O manuscrito teria
sido escrito no século XIII por um monge beneditino que vivia num isolado
mosteiro em Podlažice na região da Bohêmia, que hoje corresponde a República
Tcheca. Não se sabe quem foi seu autor e esse aliás é um dos grandes mistérios
que cerca a obra.
Existe uma lenda muito antiga sobre a criação do Codex Giga.
Segundo essa lenda, o responsável pelo trabalho foi um monge rebelde que rompeu
com o rigoroso códigos de sua ordem. Por suas atitudes ele foi condenado a ser
emparedado vivo em uma cela. Para evitar a agonia de morrer de fome e sede, o monge
se comprometeu com seus superiores a escrever um tratado que glorificaria o
nome da ordem para sempre. Esse maravilhoso livro deveria reunir todo o
conhecimento humano em suas páginas e ser uma obra definitiva de erudição e
sabedoria. Havia, no entanto, uma condição bastante específica: o monge teria
apenas vinte e quatro horas para completar a tarefa.
Imediatamente ele se pôs a compor uma vasta bíblia com uma
caligrafia rebuscada e firme. Cada página de velino deveria ser decorada com
belíssimas iluminuras feitas com uma tinta vibrante nas cores vermelha, azul,
amarela, verde e dourado com um grau de detalhismo surpreendente. O religioso
pensou que fazendo um trabalho extraordinário poderia convencer seus colegas a
lhe poupar.

Com a ajuda do demônio, o monge conseguiu completar a obra e
antes do surgimento dos primeiros raios de sol, o manuscrito estava pronto.
Maravilhados com o resultado, e considerando que aquilo so podia ser uma
inspiração divina, os monges libertaram seu colega. Imediatamente ele deixou o
lugar sem olhar para traz. Algumas lendas afirmam, que quando já estava longe,
ouviu-se os gritos aterrorizados dos monges ao de deparar com a ilustração da
página 290 onde contemplaram a imagem do diabo.
A lenda é claro, não responde muitas questões sobre o Codex.
A primeira e mais importante pergunta envolve a identidade
de quem o escreveu. O que se sabe com certeza é que o modesto monastério de
Podlažice não se notabilizou por produzir qualquer outra obra dessa grandeza. A
própria biblioteca do monastério não era grande ou especialmente equipada.
Muitos historiadores chegam a levantar suspeitas de que o tratado não tivesse
sido redigido nesse lugar, ainda que em uma das primeiras páginas do Codex se
confirme textualmente essa informação.
Alguns estudiosos supõem que o livro poderia ter sido
adquirido de outro monastério por um abade interessado em dizer que o livro
fora criado em Podlažice e assim receber
algum tipo de benefício da diocese. Mas essa hipótese encontra fortes objeções
já que não havia muitos outros monastérios na região e transportar uma obra
desse tamanho poderia ser não apenas trabalhoso, mas arriscado dado seu valor.
Além disso, como os monges fariam para pagar um volume tão caro?
Supondo-se que o Codex Giga foi criado atrás dos muros de
Podlažice é preciso imaginar como o trabalho foi realizado. Produzir uma
manuscritos envolve um trabalho grandioso que podia demorar anos para ser
concluído - isso excluindo a ajuda providencial do diabo.
Para alguns, a criação do Codex pode ter sido uma empreitada
que envolveu todos os monges do monastério o que consumiu vários anos de
trabalho concentrado. O objetivo poderia ter sido atrair o interesse da diocese
através da obra e receber assim mais fundos. Isso talvez explique porque o
monastério não produziu outras obras ao longo de sua existência, já que todos
estariam envolvidos no mesmo projeto.
Mas se o livro decorre de um esforço comum deveria constar
alguma menção a isso o que não é o caso.

Finalmente, há algo ainda mais curioso à respeito do Codex
Gigas e que envolve a autoria do volume. Grafologistas concluíram que todas as
310 páginas foram escritas pela mesma pessoa, ou seja, o trabalho laborioso de
copiar cada trecho foi pacientemente realizado por uma única mão. Sabendo que
cada página de um livro desta natureza pode demorar muito tempo para ser
concluída é surpreendente que o trabalho decorra de um mesmo indivíduo. Os
especialistas atestaram que a caligrafia apresenta mudanças perceptíveis ao
longo das páginas, apontando para a possibilidade do escriba ter envelhecido e
perdido um pouco da firmeza com que copiava as palavras com o passar do tempo.
Para os especialistas a obra deve ter demorado algo entre 25-30 anos para ser
terminada.
Outra descoberta que reforça a hipótese de um indivíduo
solitário é que a tinta utilizada no tratado é basicamente a mesma do início ao
fim. Nessa época, os próprios monges produziam a tinta que utilizavam em seu
ofício e cada um tinha uma preferência. Estudiosos foram capazes de descobrir o
responsável por um mesmo trabalho examinando a tinta usada por ele, quase como
se cada monge tivesse uma assinatura própria de acordo com os ingredientes
usados na mistura. No caso do Codex Gigas, a tinta foi produzida a base de
ninhos de inseto triturados com betume, uma fórmula bastante específica e incomum.
As primeiras menções ao Codex Gigas datam de meados do
século XIII, quando o monastério de Podlažice enfrentava sérias dificuldades
financeiras. Para levantar dinheiro e continuar existindo, em 1477 os monges
negociaram a venda do manuscrito para outro monastério mais rico próximo da
capital, Praga. Infelizmente, Podlažice acabaria sendo destruído por doença e
peste que varreu a Europa Oriental nessa mesma época. Dizem que nenhum dos
monges do local sobreviveu a terrível epidemia. Logo que o documento foi
transportado e acomodado na biblioteca da ordem que o adquiriu, esta também
começou a perder recursos e enfrentar dificuldades. Esses dois acontecimentos
juntos acrescentaram mais um detalhe a lenda do Codex Gigas, uma suposta
maldição que recaía sobre todos que adquiriam o livro.
Incapaz de manter o tomo - e segundo alguns temendo as
estórias que o cercavam, o monastério acabou doando o volume em 1594 ao
Imperador Rudolfo II do Sacro Império Romano. Acredita-se que o erudito
governante tinha um profundo interesse em alquimia e ocultismo e que desejava o
livro desde que ouvira boatos sobre sua existência. Um cronista da época
relatou que ao se deparar com a imagem do demônio, Rudolfo II sorriu
enigmaticamente e comentou que o livro doravante seria seu tesouro mais
valioso. Mas o livro não traria bons frutos ao imperador. Poucos anos depois
seu comportamento sofreu uma drástica transformação, ele se tornou errático e
paranoico vendo conspirações em todo canto. Declarado incapaz de governar
acabou banido pela sua própria família.

Ao longo dos anos, o manuscrito recebeu uma enorme variedade
de nomes que fazem alusão ao seu tamanho e ao famoso retrato do Diabo. Além da
Bíblia do Diabo e Codex Gigas foi também chamado Codex Giganteus (Livro
Gigantesco), Gigas Librorum (O Livro Grandioso), Fans Bibel (Bíblia do
Demônio), Hin Hales Bibel ("Old Nick Bíblia") e Svartboken (o Livro
Negro).
O Codex Gigas é a
única bíblia medieval conhecida onde existe uma imagem demoníaca, ao menos um
demônio que não está sendo submetido pelo Anjo Gabriel. A figura é retratada
semi-vestida com a tradicional pele de arminho real, uma óbvia conotação ao
papel do diabo como monarca do inferno. Ele é
metade homem, metade animal, com garras, patas de falcão, e uma enorme língua
vermelha. Os chifres são longos, brotando na cabeça bulbosa e desproporcional.
O desenho mostra a figura diante de uma parede murada sem seus súditos ou
escravos infernais. Muitos supõem que a imagem pode ser uma alusão a condição
de aprisionamento do demônio no inferno e a impossibilidade dele ascender.
Qualquer pessoa folheando o tomo acaba sendo eventualmente
atraído para o enorme retrato do diabo na página 290, o que criou a impressão
de que este é um dos pontos focais do livro. Ao longo da história, muitas
pessoas também chamaram a atenção para o fato da página ser mais escura em
comparação a todas as demais do livro. E que esta seria uma manifestação
sobrenatural ocasionada pela representação diabólica ali retratada. Mas a
explicação mais aceitável para esse fenômeno reside no fato de que a luz
incidindo sobre a página em especial acabou por escurecer o velino.
O conteúdo do Codex Gigas inclui uma versão da Vulgata
Latina, a tradução da Bíblia em grego para o idioma latim realizada no século
IV. Além das passagens bíblicas completas, o Codex possui cinco grandes textos
de cunho histórico e científico. Dois trabalhos do filósofo Flavius Josephus
que viveu no século primeiro, as antologias Antiquities e Guerras Judáicas.
Além disso, ele também apresenta uma versão da
Etymologiae, uma enciclopédia escrita por Isidoro de Sevilha e o tratado
histórico "Chronica Boemorum" (Crônicas da Boémia) que relata a
formação política daquela região. Ainda mais interessante é a existência de uma
miscelânea de textos exclusivos versando sobre medicina, uso de ervas,
tratamentos para doenças perigosas, realização de magias, rituais de
purificação, penitências, exorcismos e outras noções práticas para eruditos.
Como não poderia deixar de ser, um livro conhecido como
"A Bíblia do Diabo" naturalmente se torna uma espécie de para-raios
de superstições e narrativas bizarras. Uma das mais conhecidas lendas diz que
quando o livro é deixado fechado por muito tempo, acaba se abrindo por conta
própria, sempre na mesma página... a do retrato do diabo.
Outra lenda ligada ao livro diz que alguns trechos escondem
encantamentos diabólicos e rituais de magia negra que podem ser decifrados a
partir do estudo de alguns trechos. Ler o livro em algumas noites
pré-determinadas também seria nocivo, pois nessas datas específicas alguns
trechos mudavam e incluíam louvores satânicos. Finalmente, a imagem diabólica
teria a propriedade de permitir que o leitor se comunicasse com o próprio
demônio ao encarar seus olhos por tempo suficiente e pedir uma audiência com
ele.
Passados tantos anos, a "Bíblia do Diabo" ainda
mantém a sua aura mística. Prova disso é o sucesso de uma exposição organizada
em 2007 que trouxe o Codex Gigas de volta a Praga, 357 anos depois dele ter
sido removido.
Na ocasião, filas de curiosos se formaram na Biblioteca
Nacional, todos ansiosos para ter um vislumbre do misterioso livro. E com
certeza, muitos esperavam pela oportunidade de olhar nos olhos da misteriosa
imagem e saber se as lendas podem ser verdadeiras...